MEMORIAS, "ANALOGIAS E TRANSPOSICOES POETICAS"/MEMORIES, "ANALOGIES AND POETIC TRANSPOSITIONS".
Uma possivel referencia de Charles Baudelaire (2007: 35) a memoria surge indiretamente em Pequenos poemas em prosa (1869), quando o poeta justifica em tom confessional a Arsene Houssaye sua ambicao de obter uma prosa poetica permeavel "as ondulacoes do devaneio, aos sobressaltos da consciencia" que emergem do cotidiano ou de uma recordacao: "Voce mesmo, meu caro amigo, nao tentou traduzir numa cancao o grito estridente do vidraceiro, e expressar numa prosa lirica todas as aflitivas sugestoes que este grito envia ate as aguas furtadas, atraves das mais altas brumas da rua?"Yves Bonnefoy (2000) estabeleceu certa tensao ou relacao paradoxal entre os temas da memoria e do esquecimento na poesia de Baudelaire ao distinguir elementos autobiograficos que teriam inspirado a composicao de dois poemas de As Flores do Mal (1857), "Nunca mais esqueci, da cidade vizinha" e "A ama bondosa de quem tinhas tanto ciume". Bonnefoy definiu por "tentation de l'oubli" o desejo que impele o escritor a priorizar e refinar a linguagem, criadora de um mundo a sua conveniencia, alheio ao consequente distanciamento das coisas e seres como estes se apresentam nas relacoes humanas que nascimento, acaso e morte determinam. Caberia a poesia reparar tal perda, lutar contra o esquecimento, a fim de devolver sua presenca a realidade cotidiana, sua capacidade de ensinar a sorte de verdade propria a existencia efetivamente vivenciada.
Entre as "correspondances" que entrelacam memoria e linguagem nas obras de Baudelaire e Marcel Proust, Antoine Compagnon (2003, p. 66) assinalou o conceito de "eterno" e a questao da temporalidade: o primeiro pensado como figura da memoria involuntaria, a segunda como dominio da reminiscencia que transcende o presente. Esta reflexao de Compagnon poderia ser ilustrada por esta passagem de "O quarto duplo":
A que demonio benevolo devo o estar assim rodeado de misterio, de silencio, de paz e de perfumes? Oh, beatitude! O que geralmente denominamos vida, mesmo em sua expansao mais feliz, nada tem em comum com esta vida suprema da qual tenho ciencia agora, e que saboreio minuto a minuto, segundo a segundo! Nao! Ja nao existem minutos! Ja nao existem segundos! O tempo desapareceu: e a Eternidade que reina, uma eternidade de delicias! Mas uma batida terrivel, pesada, ressoou na porta, e, como nos sonhos infernais, me pareceu que eu recebia uma enxadada no estomago. (...) toda essa magia desapareceu com a brutal batida (...) Horror! Estou lembrando! Estou! Sim! Este casebre, morada do eterno tedio, e realmente o meu. (BAUDELAIRE, 2007, p. 45).
Paul Ricoeur (2000: 26-30) abordou a nocao de reminiscencia considerando-a no quadro da problematica do esquecimento. Refletir sobre a memoria pressupoe a revelacao da aporia da presenca de uma ausencia, ou seja, para representar o passado e necessario admitir a extincao de algo no tempo. Evocar fatos do passado, armazenados pela memoria ou registrados pela historia, narrados oralmente ou por escrito, no intuito de reconstituir ou confirmar algo, exige da consciencia um exercicio de retrospeccao que incluiria a mimesis (1) nos relatos historicos e ficcionais, segundo Ricoeur (1990, p. 309-320).
A nocao de memoria associativa que Proust desenvolveu artisticamente a partir da poetica de Baudelaire estender-se-ia ao projeto composicional de uma prosa peculiar, capaz de apreender a linguagem simbolicamente elaborada da consciencia, do devaneio e das recordacoes. Pedro Nava incluiu e comentou tal proposta na redacao da Memorias.
Adotando esta hipotese inicial de estudo, este ensaio pretende comentar a ideia de uma memoria evocativa (2), cujo aspecto sugestivo e poetico pode expressar gradacoes, adequando-se a linguagens e generos diferentes da prosa. O objetivo e examinar, de forma breve e comparativa, como se apresenta a questao tematica da memoria evocativa em alguns excertos dos discursos literarios de Baudelaire, Proust e Nava. Considerando a obra de Proust, Bau de ossos (1972) inaugura o projeto inconcluso das Memorias distinguindo por funcoes as faces da memoria evocativa para recuperar o passado: "memoria associativa", "memoria involuntaria" e "sistema de recuperacao do tempo".
Este ultimo, incluiria o aporte mnemonico da musicalidade na sugestao poetica de Baudelaire: "[...] traduzir numa cancao o grito estridente do vidraceiro, e expressar numa prosa lirica todas as aflitivas sugestoes que este grito envia ate as aguas furtadas, atraves das mais altas brumas da rua". Assim, uma passagem da juventude "da mineira da gema D. Maria Luisa da Cunha Pinto Coelho Jaguaribe", a "Inha Luisa", avo de Nava, perdura na memoria familiar e na cronica "das mais altas brumas" do Paraibuna:
[...] numa festa de Sao Joao, dada pelo Coronel Ribeiro de Rezende, o futuro Barao de Juiz de Fora (...) a Inha Luisa meteu num chinelo (...) as netas emproadas e ricacas do dono da casa. A rainha do baile foi minha avo, como o cantou Inacio Gama em valsa-cancao que lhe dedicou e que se chamava "Passavas linda..." Esse "Passavas linda..." virou numa especie de hino nacional do sucesso feminino da familia e as bisnetas da Inha Luisa cantam-no ainda hoje, para as filhas e as filhas das filhas. (...)Os versos, transcritos assim, perdem muito do seu conteudo mas, envolvidos no compasso ternario e no ritmo de valsa--sol--sol--sol--si--la--sol--fa--mi--re--re--do--da musica composta pelo Gama, eram de rasgar os coracoes mais duros. (...) Curto, entretanto, foi esse extase. (NAVA, 1974, p. 128-130).
Em "Um hemisferio numa cabeleira", Baudelaire (2007, p. 93) associa o perfume e a musica a experiencia de viagem no tempo: "Minha alma viaja por sobre o perfume como a alma dos outros homens por sobre a musica". Paginas adiante, o memorialista "ficcionaliza" essa viagem no tempo, somando uma metafora (3) poetica a referencia sobre a valsa-cancao que emoldura a passagem biografica da avo materna, agora bem casada:
Comecou para minha avo uma vida de novela. Que noite para a menina de Santa Barbara. Fizera mesuras ao Imperador e a Imperatriz, vira os ministros, os senadores, os conselheiros, os diplomatas, os titulares, os reposteiros, os mocos fidalgos, as camareiras, as acafatas. Achatara com suas joias e o rangido de sua roupa as primas da Corte e tivera o momento mais alto de sua vida ao romper numa valsa com o Conde d'Eu... Coitado do Inacio Gama, tocando violao na Rua do Sapo! (NAVA, 1974, p. 145, grifo nosso).
Bau de ossos divide-se em quatro secoes. "Rio Comprido" e o titulo da ultima. A segunda parte dessa secao apresenta a nocao de "chaves da memoria" e a sumula de um sistema poetico-mnemonico de recuperacao do passado. Tal secao reune duas epigrafes. A primeira foi retirada do "Capitulo LX/ Querido opusculo", de Dom Casmurro (1899):
Ves que nao pus nada, nem ponho. Ja agora creio que nao basta que os pregoes de rua, como os opusculos de seminario, encerrem casos, pessoas e sensacoes; e preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo e calado e incolor. (ASSIS, 1978, p. 255).
No plano (auto)biografico da obra, referente ao narrador machadiano, seria possivel inferir uma teoria sobre a recepcao do texto literario, a partir desta digressao: se lembrancas relacionadas a vida de alguem, "[...] sao ainda uma parte da pessoa (...) como a pedra da rua, a porta da casa, um assobio particular, um pregao de quitanda", elas seriam mais significativas num livro quando identificadas ao repertorio de leituras ou a experiencia de vida do leitor, de outro modo dissolver-se-iam na indeterminacao--caso o leitor "nao achar no trecho escrito nada que lhe acordasse saudades". Nesse caso, seria inutil que o autor fornecesse documentacao de apoio aquelas memorias: "Para que nao aconteca o mesmo aos outros profissionais que porventura me lerem, melhor e poupar ao editor do livro o trabalho e a despesa da gravura" (ASSIS, 1978, p. 255).
A resolucao de excluir do capitulo certo "pregao das cocadas", depois de "faze-lo escrever por um amigo, mestre de musica" porque "[...] outro musico (...) confessou ingenuamente nao achar no texto escrito nada que lhe acordasse saudades" pressuporia para o genero memorias o mesmo leitor de romances, contos e novelas folhetinescos?
O narrador de Dom Casmurro consagraria a memoria afetiva o papel de iluminar a estrutura dramatica e metaforica da linguagem literaria e de outras muitas expressoes simbolicas que "encerrem casos, pessoas e sensacoes". Essa passagem ilustra a seguinte, extraida por Nava d'O tempo redescoberto (1927). A hipotese proustiana sobre o vinculo da percepcao sensorial com as "reminiscencias" complementaria a que ressalta na educacao estetica o valor da experiencia--de ter "conhecido e padecido no tempo":
Uma das obras-primas da literatura francesa, Sylvie, de Gerard de Nerval, encerra, tal como o volume das Memoires d'outre tombe relativo a Combourg, uma sensacao do mesmo genero que o gosto da Madeleine e o "trinado do tordo". Em Baudelaire, enfim, tais reminiscencias, ainda mais numerosas, sao evidentemente menos fortuitas e, portanto, em minha opiniao, decisivas. E o proprio poeta quem, com mais requinte e indolencia, busca deliberadamente no cheiro da mulher, por exemplo, em seus cabelos e em seu seio, as analogias inspiradoras que lhe evocarao "l'azur du ciel immense et rond" e "un port rempli de flammes et de mats". Tentava eu lembrar-me dos poemas de Baudelaire assim baseados numa sensacao transposta, a fim de, de uma vez por todas, filiar-me a uma nobre linguagem... (PROUST, 2013).
Por sua vez, Nava dedica-se a expandir os argumentos dos narradores em Dom Casmurro e O tempo redescoberto, atribuindo definicoes e finalidades a memoria a fim de elucidar o sentido poetico da composicao artistica. As reminiscencias integrariam um corpus ou acervo dinamico de emocoes, imagens e sensacoes ativadas pelo inconsciente--agindo em unissono com operacoes de "analogias", "substituicoes" e "transposicoes":
Ha assim uma memoria involuntaria que e total e simultanea. Para recuperar o que ela da, basta ter passado, sentindo a vida; basta ter, como dizia Machado, "padecido no tempo". A recordacao provocada e antes gradual, construida, pode vir na sua verdade ou falsificada pelas substituicoes cominadas, pela nossa censura. E ponto de partida para as analogias e transposicoes poeticas que Proust aponta em Baudelaire... l'azur du ciel immense et rond...--... un port rempli de flammes et de mats...(NAVA, 1974, p. 306).
Os versos citados de Baudelaire (2012, p. 169-171) pertencem, respectivamente, aos poemas "La chevelure": "Tu contiens, mer d'ebene, un eblouissant reve / De voiles, de rameurs, de flammes et de mats (...) Cheveux bleus, pavillon de tenebres tendus, / Vous me rendez l'azur du ciel immense et rond"; e "Parfum exotique": "Guide par ton odeur vers de charmants climats, / Je vois un port rempli de voiles et de mats" (167). (4)
Como notou Melvin Zimmerman (1968), exaltado por ser fonte de sinestesias para o poeta, o cheiro dos cabelos da amante e tema familiar para o leitor de Baudelaire, com outras "correspondances" em As flores do mal: "O perfume" e "A serpente que danca". Nos Pequenos poemas em prosa, o tema ressurge em "As vocacoes". Ao editar As flores do mal, Jacques Crepet e Georges Blin (1950, p. 335 apud Zimmerman, 1968, p. 112) exploraram as analogias entre "A cabeleira", "Perfume exotico" e "Um hemisferio numa cabeleira". Para os editores, "as mesmas imagens, mesmas notas e tonicas" poderiam manifestar uma sonoridade com nuances diferentes em verso e prosa. (5) Porem, em acrescimo as variacoes estilisticas da linguagem suscitadas pelas "mesmas imagens, mesmas notas e tonicas" desses poemas, caberia notar a ideia de uma memoria poetica, configurada esteticamente pelas associacoes de uma sensibilidade engenhosa e refinada.
Contudo, a diferenca de "A cabeleira", "Perfume exotico", "O perfume" e "A serpente que danca", "Um hemisferio..." nao se inicia por um encomio ("O tosao que ate a nuca se encrespa em cachoeira!"), por uma reflexao ("Quando, cerrando os olhos, numa noite ardente,"), por uma indagacao ("Leitor, tens ja por vezes respirado/ Com embriaguez e lenta gostosura/ O grao de incenso que enche uma clausura, / Ou de um saquinho o almiscar entranhado?") ou por uma explanacao ("Em teu corpo, languida amante,/Me apraz contemplar,/ Como um tecido vacilante,/ A pele a faiscar."), mas sim por um convite aquela que seria poeticamente comparavel ao emblema de Mnemosine:
Me deixe respirar, por longo, longo tempo, o cheiro de seus cabelos, neles mergulhar todo o meu rosto, como um homem sedento na agua de uma fonte, e agita-los com minha mao como a um lenco cheiroso, para sacudir lembrancas no ar. (...) Seus cabelos contem todo um sonho, repleto de velas e mastros; contem grandes mares, cujas moncoes me levam a encantadoras regioes, onde o espaco e mais azul e mais profundo, onde a atmosfera e perfumada pelas frutas, pelas folhas e pela pele humana. No oceano de sua cabeleira, entrevejo um porto fervilhando de cantos melancolicos, homens vigorosos de todas as nacoes e navios de todas as formas, recortando suas arquiteturas finas e complicadas num ceu imenso, onde se estira o eterno calor. Nas caricias de sua cabeleira, reencontro os langores de longas horas passadas num sofa, no quarto de um belo navio, embaladas pela arfagem imperceptivel do porto, entre os vasos de flores e as moringas refrescantes. Na ardente lareira de sua cabeleira, respiro o cheiro do fumo mesclado de opio e acucar; na noite de sua cabeleira, vejo refulgir o infinito do azul tropical; nas margens de penugem da sua cabeleira, me embriago com os cheiros combinados do alcatrao, do almiscar e do oleo de coco. Me deixe morder, por longo tempo, suas trancas pesadas e negras. Quando mordisco seus cabelos elasticos e rebeldes, me parece estar comendo lembrancas.(BAUDELAIRE, 2007, p. 93-95).
Em "A cabeleira", Baudelaire (2012, p. 171), relacionou ao "Extase!" a imagem "Das lembrancas que dormem". De acordo com Julien Zanetta (2018: 267-269), os eventos momentaneos que despertam as lembrancas do narrador de Em busca do tempo perdido (o pavimento desnivelado do patio da residencia dos Guermantes, a batida de uma colher num prato, o deslizar de um guardanapo sobre os labios) ao projeta-lo no passado ativam revelacoes que resultam na decisao de comecar a escrever. Mergulhado em reflexoes inspiradas pela sucessao de enleios ou "extases", ele traz a mente formas analogicas de comunicar impressoes esteticas, "des impressions vraiment esthetiques".
Tais impressoes reconfiguram, inclusive, a nocao de espaco, conforme sugerido em "Um hemisferio...", "[...] contem todo um sonho (...) cujas moncoes (...) levam a encantadoras regioes, onde o espaco e mais azul e mais profundo, onde a atmosfera e perfumada". Baudelaire e Proust reflexionam sobre a dimensao espacial da memoria em varias instancias, explorando os planos biografico, estetico e filosofico, que interrogam "sensacoes" e "reminiscencias" capitais na reconstrucao do passado, do "lugar distante", da "visao inefavel", presentificados pelas "analogias inspiradoras" de um "lugar atual":
Sempre, nessas ressurreicoes, o lugar distante, engendrado em torno da sensacao comum, agarrava-se por um instante, como um lutador, ao lugar atual. Sempre este saia vencedor; sempre o vencido me parecia o mais belo, tanto que ficara em extase sobre as pedras desiguais como ante a xicara de cha, tentando reter quando surgiam, invocar se me escapavam, aquele Combray, aquela Veneza, aquela Balbec invasores e sopitados que se erguiam para abandonar-me em seguida no seio desses lugares novos, mas permeaveis ao passado. (...) essas ressurreicoes do preterito, durante sua fugaz duracao (...) Forcam-nos as narinas a respirar a atmosfera de sitios todavia remotos, a vontade a optar entre os diversos projetos que nos sugerem, a pessoa inteira a crer-se em seu amago, ou pelo menos a tropecar entre eles e os locais presentes, na vertigem de uma incerteza semelhante a que nos provoca por vezes, ao adormecermos, uma visao inefavel. (PROUST, 2013)
Buscar as fugazes vias de expressao da evocacao mnemonica, "ressurreicoes do preterito" para "respirar a atmosfera de sitios todavia remotos" e o que se propoe ao leitor de "O perfume": respirar, "Com embriaguez e lenta gostosura". Nesses versos de Baudelaire (2012: 229), a atuacao da memoria associativa engendra "Sutil e estranho encanto [que] transfigura/ Em nosso agora a imagem do passado". Respirar e tambem engrenagem comum as memorias associativa e voluntaria em "Um hemisferio...": "Me deixe respirar, por longo, longo tempo (...) para sacudir lembrancas no ar", entrever cenas, lugares e "cantos melancolicos", "caricias", "langores" "cheiros combinados" "de todas as formas" (2007: 93-95). Em Dom Casmurro, o espaco enseja o desejo de apreender "Dans le present le passe restaure!, como expos Baudelaire (2012, p. 229):
A casa em que moro e propria; fi-la construir de proposito, levado de um desejo tao particular que me vexa imprimi-lo, mas va la. Um dia, ha bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. (...) O mais e tambem analogo e parecido. (...) O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescencia. (ASSIS, 1978, p. 178).
Para Gaston Bachelard (2000, p. 20-21), o "eu" subsiste no ato de rememorar, ato que pode ser configurado por meio de uma arquitetura metaforica, erigida no ambito do espaco recordado. "Cada um guarda a paisagem de um ano, de um mes, uma semana, um dia, uma hora!--pedaco de espaco em que se comprimiu o Tempo--de que a memoria vai construir sua eternidade", segundo Nava (1974, p. 203). Preenchidos pela imaginacao, alguns espacos mnemonicos constituem para a literatura um manancial de impressoes, intuicoes e conceitos abstratos sobre a realidade, acervo "cuja evocacao e uma esmagadora oportunidade poetica" (NAVA, 1974, p. 17).
Em "O crepusculo da tarde", Baudelaire (2007, p. 121) descreve a contemplacao da "sinistra ululacao (...) do negro hospicio encarapitado sobre a montanha" em contraste ao "repouso do imenso vale, ericado de casas de que cada janela diz: 'Aqui agora existe paz, aqui existe a alegria da familia'". Recorrendo a expressao de Guimaraes Rosa (1976, p. 3), "instrumento de analise, nos tratos da poesia e da transcendencia", esse contraste esboca um traco barroco na imagem com que Baudelaire (2007, p. 121) reveste a ideia de "embalar [o] pensamento atonito nesta imitacao das harmonias do inferno".
Similar a nocao roseana (1976, p. 3) de chiste, a justaposicao dos paradigmas antiteticos de edificacoes simbolicas (o hospicio ululante e a casa onde "existe paz"), "[...] escancha os planos da logica, propondo-nos realidade superior e dimensoes para magicos novos sistemas de pensamento", assim expostos na composicao das Memorias:
Os mortos... Suas casas mortas... Parece impossivel sua evocacao completa porque de coisas e pessoas so ficam lembrancas fragmentarias. Entretanto, pode-se tentar a recomposicao de um grupo familiar desaparecido usando como material esse riso de filha que repete o riso materno; essa entonacao de voz que a neta recebeu da avo, a tradicao que prolonga no tempo a conversa de bocas ha muito abafadas por um punhado de terra (--tinham uma lingua, tinham... Falavam e cantavam...); esse jeito de ser hereditario que vemos nos vivos repetindo o retrato meio apagado dos parentes defuntos; o fascinante jogo da adivinhacao dos tracos destes pela manobra de exclusao. Um exemplo, para esclarecer a frase obscura: minha prima Teresa Albano Ferreira Machado--que nao se parece com o pai, nem com a mae, tampouco com os irmaos--e ver nosso parente Silvio Froes Abreu. Eles nem se conheceram e nunca explicariam tal semelhanca. Mas eu subo anos afora, partindo de Teresa. Chego a sua mae Maria Alice, a sua avo Maria Luna, a sua bisavo Candida, a sua tataravo Ana Candida, a sua quarta-avo Maria de Barros Palacio, a seus quintos-avos Manoel Joaquim Palacio e Antonia Teresa de Barros. Desco a outra filha deles, mulher de Jose Bonifacio Abreu, pais de Joao da Cruz Abreu, pai de Silvio Froes Abreu, que nao se parece com este, nem com a mae Froes, nem com o irmao Mario--mas que reproduz traco por traco o rosto de uma prima no sexto grau civil e no decimo canonico. Mascara comum que eles tiraram magicamente do Tempo. Mascara aquilina, dolicocefala e rara que eu coloco nos Barros porque, por tecnica identica, dela posso excluir os Palacio que repontam com mais frequencia em outros parentes braquicefalos e de cara angulosa. Como motivo musical de sonata--longamente oculto mas sempre pressentido--surge, depois de dois seculos, a cabeca de D. Antonia Teresa de Barros prosseguindo, incorruptivel, imutavel e eterna nas suas reencarnacoes. Agora, neste preciso e transitorio instante, a orbita do cometa tocou seus descendentes Silvio e outra Teresa. Com mao paciente vamos compondo o puzzle de uma paisagem que e impossivel completar porque as pecas que faltam deixam buracos nos ceus, hiatos nas aguas, rombos nos sorrisos, furos nas silhuetas interrompidas e nos peitos que se abrem no vacuo--como vitrais fraturados (onde no burel de um santo vemos--la fora!--ceus profundos, arvores ramalhando ao vento, avioes, nuvens e aves fugindo), como aqueles recortes que suprimem os limites do real e do irreal nas telas oniricas de Salvador Dali. Um fato deixa entrever uma vida; uma palavra, um carater. Mas que constancia prodigiosa e preciso para semelhante recriacao. E que experiencia... (NAVA, 1974, p. 40)
A ideia da obra como catedral, imenso edificio de recordacoes, e muito presente em Proust, notou Valentina Corbani (2012, p. 73-74). E provavel que "as tristes janelas em que a chuva tracou sulcos na poeira" do quarto descrito por Baudelaire (2007:45) em Le Spleen de Paris e "la monumental cattedrale proustiana", segundo definiu Corbani, "una cattedrale solidissima", tivessem, como nas Memorias, "vitrais fraturados" em face da perda e do esquecimento, porem compensados pela beleza de suas imagens, com a visao de "ceus profundos, arvores ramalhando ao vento, avioes, nuvens e aves fugindo".
E igualmente provavel que elementos (auto)biograficos tenham participado dos "Pequenos poemas em prosa", encerrados pelo trabalho da imaginacao e da linguagem poetica em "lembrancas fragmentarias". Dessa mesma maneira, alguns personagens de Proust e Nava, a exemplo, respectivamente, de Albertine Simonet e Lenora, sao reconstituicoes liricas e ficcionais da realidade. "A vida tambem e para ser lida. Nao literalmente, mas em seu supra-senso", como sentenciou Rosa (1976, p. 4), e muitas vezes as ausencias deixadas pelos mecanismos da memoria evocativa levam o escritor a usar metodos analogos aos do historiador empenhado em reconstituir a narrativa do passado, sondando, feito quem desperta de um sonho, "os manuscritos rasurados ou incompletos; a folhinha em que o lapis marcou as datas sinistras!", notados por Baudelaire (2007, p. 45).
Tal esforco encontra obviamente os proprios limites; e, mais do que a experiencia, ele deve contar com a memoria e a sensibilidade de quem le, "sem o que tudo e calado e incolor". A composicao da obra literaria e, de certa forma, um trabalho nostalgico cujo "cortejo de Lembrancas, Desgostos, Espasmos, Medos, Angustias, Pesadelos, Raivas e Neuroses" e conduzido no Tempo pela elaboracao estetica da memoria evocativa.
Referencias
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Maria Alice Ribeiro Gabriel. Doutora em Historia Social pela Universidade de Sao Paulo, USP.
E-mail: rgabriel1935@gmail.com
Recebido em: 13/01/2019
Aceito em: 01/04/2019
Maria Alice Ribeiro Gabriel
Universidade Federal de Uberlandia Uberlandia, MG, Brasil
ORCID 0000-0003-0256-1306
(1) O conceito de mimesis desenvolvido por Ricoeur (1990, p. 45-46) a partir da Poetica de Aristoteles propoe que a mimesis nao contem apenas uma funcao de ruptura entre o dominio real, alusivo a "etica", e o imaginario, respectivo a "poetica". A funcao de ruptura instaura o espaco de ficcao, mas ha tambem uma funcao coesiva, responsavel pela transposicao "metaforica" do campo pratico ao dominio do mito. Neste caso, a definicao primeira de mimesis preconizada por Ricoeur refere-se ao estado que precede a composicao poetica. A segunda foi denominada mimesis-criacao e possui funcao basilar em relacao as outras duas. A terceira, por seu carater dinamico de atividade mimetica, nao se restringe ao texto poetico, mas alcanca o espectador ou leitor. As operacoes envolvidas nos estados que antecedem e sucedem a mimesis-invencao da composicao poetica efetuam a reconfiguracao do passado na esfera do imaginario.
(2) Na transcricao de recordacoes, impressoes da consciencia e devaneios, a mimesis nao e somente objeto de analise das ciencias da linguagem. A neurofisiologia da memoria e campo de pesquisa amplo. Neste, o conceito basilar de memoria evocativa refere-se a capacidade de evocar a imagem de algo ausente naquele momento. Na linha dos estudos de Marya Schechtman (2005), cujo enfoque "neolockeano" da identidade pessoal destaca a narrativa como criterio de persistencia da individualidade ao longo do tempo, Richard Heermink (2017) defende uma abordagem narrativa da identidade pessoal. Nesta acepcao, entende-se por narrativa a historia pessoal e subjetiva de uma serie de eventos conectados e de experiencias consideradas essenciais pela pessoa. Heermink arguiu que objetos evocativos, os quais estariam ligados a experiencia pessoal, ativam e constituem emocionalmente memorias (e narrativas) autobiograficas. Logo, o eu (self) seria parcialmente formado por uma teia de objetos evocativos acumulados na existencia, perspectiva que reconhece a memoria como parte essencial da individualidade. Cabe notar que, apos o terceiro volume de Tempo e Narrativa (1984-1988), Ricoeur desenvolveu um influente modelo teorico de narrativizacao do passado, apresentando o conceito de "identidade narrativa".
(3) Em "The Function of Fiction in Shaping Reality" (1979, p. 134), Ricoeur arguiu que a funcao ultima da imagem, inclusive ficcional, nao se limita a difusao de significados atraves de diversos campos sensoriais, para "alucinar" o pensamento de algum modo, mas, ao contrario, a imagem efetua um tipo de cristalizacao do real no tempo, suspendendo nossa atencao, pondo-nos em um estado de nao engajamento atinente a percepcao ou acao. Em suma, a imagem suspende o significado na atmosfera neutralizada que poderia ser chamada a dimensao da ficcao. Nesse estado de nao engajamento, experimentam-se novas ideias, novos valores e modos de ser no mundo. A imaginacao da livre curso a tais possibilidades. Nesse estado, a ficcao pode refigurar fato e criar a "redescricao" do real, assim como a metafora pode refigurar o literal.
(4) Na traducao de Ivan Junqueira: "Dentro de ti guardas um sonho, negro mar, De velas, remadores, flamulas e mastros: (...) Coma azul, pavilhao de trevas distendidas, / Do ceu profundo dai-me a esferica amplidao" (BAUDELAIRE, 2012, p. 171-173); e "Guiado por teu perfume a tais paisagens belas, / Vejo um porto a ondular de mastros e de velas" (BAUDELAIRE, 2012, p. 169).
(5) A partir da conexao entre "A cabeleira", "Perfume exotico" e "Um hemisferio numa cabeleira", Maria Celia de Moraes Leonel (1999) fez um estudo detalhado sobre as relacoes de pertinencia prosa e poesia.
http//:dx.doi.org/10.1590/1517-106X/212158169
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Author: | Gabriel, Maria Alice Ribeiro |
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Publication: | Alea: Estudos Neolatinos |
Article Type: | Ensayo critico |
Date: | May 1, 2019 |
Words: | 5201 |
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